Fonte https://reporterbrasil.org.br/
POR HELÉN FREITAS
Estudo do Idec testou 24 tipos de bebidas e alimentos ultraprocessados e encontrou resíduos de pesticidas em metade deles; Anvisa não monitora presença de agrotóxicos nesses produtos, e fabricantes dizem seguir legislação
HAMBÚRGUER À BASE DE PLANTAS, macarrão instantâneo sabor galinha, biscoito de maisena e bolinho sabor chocolate – com vestígios de agrotóxicos.
Metade de alguns dos alimentos ultraprocessados mais consumidos no país, inclusive por crianças, apresentou resíduos de pesticidas em testes de laboratório, segundo pesquisa lançada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) nesta terça-feira (21). Parte deles revelou até quatro agrotóxicos em sua composição. Ultraprocessados são comidas e bebidas industrializadas, com adição de aromatizantes, gorduras, açúcar e sódio.
O terceiro volume do estudo “Tem Veneno Nesse Pacote“, obtido com antecedência pela Repórter Brasil, testou 24 produtos de marcas conhecidas, como Sadia, Seara, Panco e Piracanjuba. Em 12 deles, foram identificadas substâncias como glifosato e cipermetrina, que podem gerar danos à saúde e ao meio ambiente.
Em 2021, o Idec já havia mostrado que 59% de uma cesta de alimentos consumidos principalmente por crianças, como bolachas recheadas, bisnaguinhas e salgadinhos, tinham traços de agrotóxicos.
Um ano depois, outro levantamento comprovou que, mesmo depois do processamento da carne e do leite, ainda era possível identificar resíduos em 58% dos alimentos testados. Agora, pela terceira vez, chama a atenção a presença de agrotóxicos em produtos populares nas mesas dos brasileiros.
“Novos estudos têm indicado que o consumo de ultraprocessados e a exposição a agrotóxicos podem causar doenças crônicas não transmissíveis, como câncer”, alerta Leonardo Pillon, advogado do programa de Alimentação Saudável do Idec.
Em nota, a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), que tem entre suas associadas empresas responsáveis por marcas como Seara, Sadia, Nissin e Triunfo, questiona o estudo do Idec e sustenta que “o setor atende à legislação brasileira, assim como as de 190 países para os quais exporta, cumprindo um papel essencial na promoção da segurança alimentar global”.
A associação argumenta ainda que o estudo “apresenta resultados de resíduos de agrotóxicos sem mencionar que existem limites seguros estabelecidos pela legislação sanitária, confundindo o consumidor e privando-o da informação completa”.
O Idec, por outro lado, coloca em xeque a eficácia dos limites citados pela Abia. Além disso, diz que não é possível determinar se os volumes de pesticidas identificados nos produtos testados representam ou não riscos à saúde humana, e que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não monitora a presença de agrotóxicos em alimentos ultraprocessados.
A Anvisa respondeu que não há metodologia científica internacional para o estabelecimento de limites de agrotóxicos em alimentos ultraprocessados. Além disso, pondera que, mesmo se houvesse base conceitual, os limites teriam que ser estabelecidos para cada produto, “o que naturalmente seria inviável na prática”.
Confira ao final do texto os posicionamentos das empresas citadas nominalmente no estudo e leia aqui a íntegra das respostas.
Agrotóxico mais consumido aparece em 29% dos produtos
Os biscoitos de maisena Marilan e Triunfo apresentaram resíduos de quatro pesticidas. Além do glifosato, o Idec também encontrou pirimifós-metílico nos biscoitos, inseticida que pode causar náuseas, tonturas e, em concentrações altas, até a morte, segundo a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos.
Outro que apareceu nas análises foi o fipronil, utilizado no combate a parasitas em animais e lavouras. No teste da “bebida láctea sabor chocolate da marca Pirakids”, o resíduo de fipronil “provavelmente estava presente no leite da vaca” usado na fabricação, destaca o estudo.
A substância foi banida no Uruguai, Costa Rica, Vietnã, África do Sul e União Europeia, por ser nociva a insetos polinizadores, como as abelhas. No Brasil, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) restringiu o uso do pesticida de forma provisória no início deste ano.
Em 29% dos produtos foi possível verificar a presença de glifosato, agrotóxico mais consumido no Brasil e classificado como provavelmente carcinogênico pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC).
A farinha de trigo, encontrada na crosta dos empanados à base de plantas, nos macarrões instantâneos e nos biscoitos, continua sendo um ingrediente com alta prevalência de contaminação por agrotóxicos, aponta a pesquisa.
Anvisa não monitora agrotóxicos em ultraprocessados
Ligada ao Ministério da Saúde, a Anvisa até hoje não estabeleceu balizas específicas sobre a presença de resíduos de agrotóxicos em alimentos processados e ultraprocessados.
Uma resolução de 2012 da agência diz, em seu artigo 39, que produtos industrializados devem levar em conta os mesmos Limites Máximos de Resíduos (LMR) previstos para alimentos in natura. O texto é inclusive utilizado como referência pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos.
O Idec, no entanto, afirma que os parâmetros da resolução da Anvisa são insuficientes. Um dos motivos é justamente o número de etapas pelas quais os alimentos industrializados passam. Um exemplo é o trigo: estudos demonstram que o processo de fabricação do farelo mais que dobra a concentração de determinados agrotóxicos, quando comparada ao do grão integral.
Questionada pela Repórter Brasil, a Anvisa já afirmou que a inclusão de ultraprocessados no Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) dependeria de um “estudo preliminar”. No início de 2023, a agência teria informado que não incluiria ultraprocessados no PARA por não dispor de capacidade logística, segundo o Idec.
“Não basta a Anvisa responder dizendo que não tem condições de incluir ultraprocessados no seu monitoramento de alimentos. Ela, o Congresso e toda cadeia produtiva precisam avaliar se esses químicos estão persistindo ou não nos alimentos”, critica Pillon.
Apelo às crianças e ao meio ambiente
O estudo faz a ressalva de que testes negativos não permitem concluir que um ultraprocessado não utilize ingredientes contaminados por pesticidas, mas revelam apenas que a amostra analisada não contém resíduos. Para validar essa hipótese, os pesquisadores repetiram o teste de bebidas lácteas de chocolate avaliadas em 2022. As mesmas marcas foram testadas — o Pirakids, que na edição anterior havia passado ileso, teve um agrotóxico detectado.
A pesquisa também analisou alimentos vendidos como opções de lanches para crianças e tidos como de baixo impacto ambiental, como os chamados “plant-based”. Assim como suas versões de origem animal, o hambúrguer e o empanado sabor frango, produzido à base de plantas, também apresentaram resíduos de agrotóxicos.
“Ainda que sejam vendidos como sustentáveis ou apresentem apelo à saúde (por exemplo, dizendo que é “feito com ingredientes naturais”, sem colesterol, conservantes ou com alegações sobre o teor de proteína), são ultraprocessados. A recomendação do Guia Alimentar para a População Brasileira é, portanto, evitar seu consumo”, afirma o estudo do Idec.
No início deste mês, o Congresso Nacional derrubou oito vetos presidenciais à nova Lei de Agrotóxicos, concentrando o poder sobre a liberação de pesticidas no Ministério da Agricultura, e enfraquecendo órgãos ambientais e de saúde. Na avaliação de Pillon, isso deve aumentar a influência do lobby ruralista e de fabricantes nos debates envolvendo agrotóxicos em Brasília, acelerando o uso desses produtos.
O que dizem as empresas
A Fazenda Futuro, produtora de hambúrgueres “plant-based”, afirmou que seus produtos passam por “um rigoroso padrão de controle de qualidade, com auditorias e programas que garantem a conformidade com as diversas normas em vigor”.
Por meio de sua assessoria, a Bimbo informou que “possui um criterioso processo de rastreabilidade a respeito da toxicidade de ingredientes” e que nenhum lote de bolinhos à venda apresenta risco à saúde e segurança do consumidor.
A Bagley do Brasil, dona da marca Triunfo, sustentou que realizou testes nos produtos indicados na pesquisa e não identificou “qualquer resquício de substâncias acima do limite especificado para este fim”.
Já a Selmi, fabricante da marca Renata, disse que não teve acesso aos estudo e que não poderia comentar a respeito. No entanto, garantiu que realiza análises e monitoramentos das farinhas utilizadas na produção, “não havendo nenhum registro de qualquer tipo de inconformidade ou de resultados fora dos parâmetros de segurança previstos nas normas”.
A Nissin informou em nota que atende a legislação vigente e as boas práticas sobre o tema.
A Seara afirmou que todos os produtos da empresa “respeitam os parâmetros para itens alimentares regulamentados pela Anvisa”.
A Panco disse que o produto analisado pelo Idec “utiliza 32 matérias-primas em sua composição e, como tal, todas estão sujeitas a análises internas recorrentes de controle de qualidade”.
A BRF, responsável pela Sadia, afirmou que “os níveis apontados pelo Idec em nossos produtos estão abaixo dos previstos em legislação”.
O Grupo Piracanjuba informou apenas que já prestou os “esclarecimentos necessários aos órgãos competentes”.
Em nota, o Grupo Marilan afirmou que cumpre “integralmente as normativas vigentes aplicáveis aos alimentos” que produzem, editadas pela Anvisa.
A Repórter Brasil também entrou em contato com Aurora, fabricante de produto com presença de agrotóxicos, segundo a pesquisa do Idec. As companhia não respondeu aos questionamentos. A matéria será atualizada caso o posicionamento seja enviado.
Nota da redação: o texto foi alterado em 22 e 23 de maio de 2024 para incluir os posicionamentos da Anvisa, do Grupo Piracanjuba e do Grupo Marilan.
EDIÇÃO CARLOS JULIANO BARROS